20101203

REQUIEM


Ao fundo havia uma gaveta
Na gaveta está o que já foi vida  
Ao fundo havia uma gaveta empoeirada 
Na gaveta está guardado o pó que agora repousa...


- O que há na tua gaveta? 
há berlindes há espera de serem lançados, um yô-yô partido ao meio, três pega-monstros que já não se pegam a nada, há matutazos e megatazos. há cromos a espera de serem colados... há um poema inacabado, uma paixão secreta pela professora de português do sétimo ano... há dentes que me saltaram da boca, uns óculos sem uma lente que ainda hoje entoam a crueldade das crianças "caixa d'óculos..." há um rebuçado floco de neve há espera de uma boa especial. uma pastilha da "gorilas" transbordado a maresia de umas férias ainda por acabar. Há canetas, há selos, há postais e cartas por enviar - porque nunca enviei estas cartas? - há um walkman partido e uma cassete que vale a pena ser escutada... há amêndoas dá pascoa e de casamentos há velas que dizem que o tempo está a passar... e bem no fundo, mesmo escondidinho numa caixinha como se um tesouro se tratasse há pequenos cristais de cloreto de cobre... - aulas de química -  há uma luva sem par, um anel que já não entra no dedo, há fotografias - olha como eu era louro. há o primeiro telemóvel, uma folha cheia de mensagens enviadas pelo natal. há cartões de estudante, os óculos da natação, uma pedra de uma qualquer praia - qualquer não! de Pedrogão, sem dúvida. preservativos de uma qualquer campanha de luta contra a sida, e o envolcro do primeiro... um swatch da expo98 para o tempo que uma máquina fotografica partida já não consegue registar,  há atacadores de sapatos e coisas que nem lembra a ninguém que ali estão... há histórias há espera de serem contadas. Há...

Ao fundo do corredor havia uma gaveta,
Naquele corredor há uma gaveta,
Ao fundo repousa no pó as lembraças de uma existencia
Naquela gaveta repousa o pó de alguém que existiu...

20101025

LITERA [carta]

(imagem do site gostodeler.com.br)

Um dia choverei na tua partida para te poder enxugar as lágrimas há chegada, serei veludo para que a viagem não seja agreste ao teu caminhar descalço. E se no regresso tropeçares no entusiasmo de me rever e arranhares os teus joelhos nas pedras do chão agreste, serei seda que deslizando pelas maçãs do teu rosto te aparará as lágrimas, o algodão que te secará as feridas, e a lã que te aconchegará nas noites em que outros nevam o teu destino.

Mas... se mesmo assim quiseres voltar a ir embora...

Eu chovo,

não porque partes, mas porque cresceste...

20100121

LACRIMAE [lágrima]


Surgiu na varanda de uma janela de cristalino verde azeitona, encantada e entontecida pelo brilho do sol. Precipitou-se lâguidamente, percorrendo toda a parede de tez branca num grito salgado contra o chão ao veres-me partir.

20091130

FRIGIDARIUS (frigidário - banho frio)


(frame do filme "Requiem for a dream" - Darren Aronofsky. sugestão de imagem Marcos Figueira)
Não tinha razão de ser, mas, insistia em alimenta-la, em seguida encharcava o pano numa mistura de agua quente e betadine limpava-lhe os resto de leite, arroz e algum pedaço já triturado de alface que numa lenta e preguiçosa cascata de saliva escorria pelo labio seguindo o queixo e mergulhava, então, para o pescoço.
O olhar era cansado mas a cara, aquela cara de maxilares cerrados imprimiam um novo vigor a cada movimento de braços. Num movimento de quem semeia milho em terra arada puxa o lençol para trás. volta-se e por breves instantes apoia secamente as mão sobre a cómoda. Por entre os ombros ergue a cabeça e como uma revelação vê: o passado, o presente e o seu futuro... pega na tina de agua morna numa tira de plástico e aproxima-se da cama:

Repousa uma massa daquilo que um dia foi gente, foi!? um saco flácido de ossos que sob a acção do calor parece ter derretido sobre aquela cama.

Rola uma parte para cima do plástico, com uma das mãos faz uma fugaz caricia na cara e com a outra mão afoga uma esponja na tina. A agua é tépida e até lhe dá algum prazer, pensa: talvez o ultimo antes da partida derradeira. Levanta-lhe um braço com a mão esquerda e com a direita fricciona a esponja. Os olhos estão semicerrados o maxilar parece colado à mandíbula e a respiração é audível... da outra boca um buraco de onde se avista uma massa mutável nem um aí se ouve.



20080816

ECCE DONUM (eis uma prenda)


Vai alta a lua no meu acolhedor quarto...

Hoje, depois de vir do cinema e de me sentar a comer aquela mistura de frutos secos, frutas cristalizadas e banana frita pensei em publicar um novo texto no blog, tenho um em mente mas ainda não está bem delineado... então?

Hoje fui ao cinema, fui ao cinema porque alguém me convidou, não que quisesse ir ao cinema fizeram-me um convite e tive todo o gosto em o aceitar... Sobretudo sabendo que quem convidou já tinha visto o filme. Isto reforça a minha ideia de que sempre que alguém nos convida é porque quer partilhar algo connosco.

Estranho, eu sei... é estranho para quem costuma ler o meu blog estar a ler este texto que é tão coloquial. Na verdade aqui eu partilho varias coisas que me passam pela cabeça, sobretudo palavras que associo de forma a soarem bem, serem agradáveis quando pronunciadas no interior de alguém...

Hoje, apetece-me partilhar algo diferente, algo que não seja meu...

Hoje fui ao cinema, e aqui escrevo coisas para partilhar: é curioso quando pego num livro ou lei-o um texto estou sempre na expectativa de ter comprado um bilhete para uma viagem. Uma viagem que me descole da realidade e onde eu consiga sentir, vivenciar, exprienciar... viver a historia

O cinema nisso facilita-nos muito a vida... quer dizer, facilita de tal forma que a viagem as vezes parece daquelas muito chatas que nem nos deixam levantar da cadeira, num livro é mais fácil perder o rumo. Eu gosto de me perder nas viagens acabo sempre por conhecer coisas interessantes que não conhecia nem esperava conhecer...

Eu fui ao cinema, eu sei que já o tinha dito...

Vai alta a noite na mansão de Morfeu, e eu fui ao cinema... vai... e com isto tudo já terminei a banana frita.

Há um texto, um poema que ilustra bem esta ideia: um bilhete para um destino, semelhante para quase todos mas onde cada um pode escolher a forma de o alcançar: O Noivado do Sepulcro, eu sei, eu sei que todos ja o conhecem está publicado em mil e um sites e nuns quantos Blog's que falta de originalidade a minha. Mas que querem, eu delicio-me com aquele texto, as imagens são tão nítidas e de tal forma elaboradas. Sim, concordo não abre espaço para grandes divagações mas a beleza imagética daquelas palavras são algo... estonteante alucinante, enfim....

Vai alta a noite e os meus olhos começam a pesar....

Hoje eu partilho com quem por aqui passar um filme em palavras de Soares de Passos:

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soouu;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na mormórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?

Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem dentre os vivos se lembrara ainda
Do pobre morto que na terra jaz?

Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!

Ai qão pesada me tem sido!"e em meio
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos prostestos nossos,
Gozes com outro d'infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!"

- "Ó nunca, nunca!" de saudade infinita,
Responde um eco suspirando além...
- "Ó nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinais, airosas.
Longas roupagens de nevado cor;
Singela c'roa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas ainda pulsa com amor por ti.

Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?

Saudosa ao longe vês no céu a lua?"
- "Ó vejo sim... recordação fatal"
- Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.

Ó vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso do teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios co cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

(in Poesias, Soares de Passos, O Noivado do Sepulcro)

20080811

OBTUNDERE (ensurdecer)


Quando mergulho nas águas perfumadas pelo cloro e os olhos ardem vejo um futuro:

Que futuro?

Quando me sento na erva húmida das margens daquele rio, daquele que gosto de ouvir murmurar entre riachos, e onde fico a observar os alfaiates a planar sobre a agua e penso na vida:

Que vida?

É de noite, é de noite que me lembro de tudo aquilo que digo, é de noite que ao esvaziar a cabeça sobre a almofada sonho:

Que sonho?

Vejo um futuro distante no qual penso e planeio cada detalhe, todos os pormenores, todas as horas, todos os minutos todos os rostos, todos os eventos todas as pessoas – quais marionetas do meu teatro – todo eu chovo sobre esse sonho tão inatingível, planos que fiz e que vou perdendo, planos que construo e vou destruído, planos que quero viver e sinto-os morrer, planos que anseio e que se distanciam… planos… planos que não alcanço… frustrações de uma vida medíocre, frustrações de uma ilusão intangível.

Pois é – dizem essas gotas salgadas – Pois é, os planos, são apenas frustrações antecipada…

20080726

PETRA (pedra)


Ninguém pode carregar com todo o peso do mundo as costas, Ninguém merece carregar com o seu peso sobre os ombros, ninguém merece:

Tu, pedra, que te fechaste ao mundo,
Tu, montanha que te exilaste da terra.
Tu, só tu e contigo só!

Eis alguém, aqui estão os ouvidos que te fazem falta e os braços que te oferecem o repouso perdido.

Eis alguém, aqui estão os ombros que te ajudarão a carregar o teu mundo.

Eis alguém, aqui estão as mão que te devolverão a tua humana forma.

Olha para os teus olhos, mar revolto de lágrimas em fúria.

Olha para os meus olhos oceano pacífico de contemplações

Olha…

Temos tanto para dar um ao outro

Temos tanto….

Vem, vem mergulhar num oceano de águas calmas.

Vem, vem aplacar as tuas fúrias contra os meus lábios.

Vem…

Mergulha nos meus olhos e redescobre as tuas emoções, em troca só peço o teu olhar sem sonhos…